sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Um direito a liberdade

Segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Quebrando o paradigma eurocêntrico: conhecendo a Odara

A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais... Que os olhos não conseguem perceber, e as mãos não ousam tocar, que os pés recusam pisar. Sei lá não sei, sei lá não sei. Não sei se toda beleza de que lhe falo sai tão-somente do meu coração. Em Caraíba [1] a poesia, num sobe e desce constante, anda descalço ensinando um modo novo de a gente viver.



(Hermínio e Paulinho da


Fig. 1 Terreiro Caxuté em Cajaiba Distrito de Valença

Tomando a licença poética usei a poesia de Hermínio e Paulinho da Viola para referir-me a Cajaiba, um distrito de Valença onde conheci o Terreiro de Mãe Bárbara, uma jovem Mãe de Santo do terreiro por nome Caxuté [2]. Estudante da escola Rural Municipal Manoel Marques, do ensino fundamental II e aluna da 8ª série, 9º ano, ela era assídua nas aulas, pelo menos em corpo presente, quanto a sua participação e intervenção, o sono diário lhe afastava constantemente das minhas aulas divertidas e cheias de informações.

Bárbara dormia constantemente! Como se fosse uma palavra chave perguntei se ela trabalhava em algum roldão da região e fui surpreendido ao ser informado que ela era mãe de santo e que dormia por que pernoitava atendendo aos Orixás. Que choque! Eu, evangélico a 25 anos, pais crédulos que Jesus condena a feitiçaria e toda aquela prática, senti-me assustado em ter uma mãe de santo em minha sala e começando a questionar como poderia dizer aquela senhora que a escola estava em primeiro lugar e depois as suas práticas pagãs. Até aquele momento o respeito a sua origem, a compreensão do outro e de sua identidade era algo que não estavam dentro do plano de meus estudos científicos, pois o conhecimento estava acima de toda aquela prática e de todo o conhecimento que não estavam nos livros e que por certo não serviam para nada.

O horário do intervalo é um momento que o professor além de respirar, pode encontrar os colegas e colocar em ordem conhecimento sobre alunos, atitudes e avaliar atitudes. Cheguei no momento do intervalo e resolvi comentar com alguns colegas que me afirmaram que por ser uma mãe de santo, ou uma feiticeira era uma pessoa que estava na escola mais que não tinha um futuro nos estudos devido a dificuldade de aprendizagem e por que estava a todo momento dormindo na sala e que ela vinha para o colégio no sentido de passar tempo apenas. Comecei a desconfiar destas suposições e levantei as seguintes hipóteses:

• como uma pessoa perde sua novela a noite para vir ter aula;

• dormir em casa é melhor que dormir na sala de aula numa cadeira desconfortável;

• ela estava ali apostando todas as suas fichas em aprender porque queria alguma coisa – que coisa seria essa?



Resolvi então aceitar o convite de ir lanchar em sua casa num dia de festa e como não poderia deixar escolhi um dia de festa na casa onde todos estivessem e meu nome não pudesse ser confundido com um dos adeptos daquela prática. Ali vi uma aluna que dormia na sala conversar, relacionar-se com diversas pessoas, atender como uma grande anfitriã e comportar-se como uma verdadeira mordomo do conhecimento. A aluna que tinha dificuldade em reconhecer os nomes dos grandes homens que revolucionaram o nosso país e a história do mundo com suas causas humanitárias estava entre podres, famintos e miseráveis tratando-os como irmãos e amigos. Ali aquela senhora sem “conhecimento cientifico e escolar” era uma rainha negra vestida dos mais brilhantes trajes e desenvolta para dançar com uma destreza que poucos cientistas teria.



Ela dirigiu-se aos homens que estavam cantando e pediu que cantasse a Maiangá[3] e logo começou a cantar numa língua que eu em todos os meus tempos de estudos nunca tinha ouvido, era a minha raiz, era a minha origem e estava distanciado a tempos de conhecer uma língua que diziam que me pertencia e que há muito se perdeu dentro da confusão de conhecimentos. Como aquela mulher cantava e decorava as palavras em ioruba, associando ritmos, movimentos e significados e tinha dificuldade em decorar e interpretar as minhas avaliações que considerava algo tão fácil e que requeriam menos esforço que aqueles?





Fig. 2 Jorge, Fabio, Carlos ( filhos de santos do Terreiro Caxuté )





Eram quase 300 pessoas no Terreiro Caxuté e a cada momento ia no tacho imaginando que a comida a qualquer momento faltaria, perguntei quantas pessoas estavam para chegar e soube que todos que estavam ali já havia comido e que sobrava era deixado para enterrar. A noção de quantidade era muito visível ao colocar nos pratos como se este cálculo fosse feito momentos antes e como ela tinha a noção de uma divisão quase exata do numero de pessoas e a quantidade de alimento que iria gastar. Essa habilidade matemática se assim posso chamar não era algo que aprendera na escola pois suas notas na matéria eram as menores. Mas como uma pessoa com dificuldade em calculo estaria administrando ao bem uma festa?





Fig.3 ( Juca e Ana filhos de santo virados no santos)





Um Orixá por nome Mariana[4] estava incorporado em minha aluna e me chamou para me aconselhar, estava amedrontado em conversar com um ser de outro mundo e temia olhar nos olhos para que não notasse o meu medo, aquele momento não tinha um resposta para explicar o meu medo e a minha dificuldade em entender o que estava acontecendo, era a minha aluna e ali estava em questionando como a vida me pregara uma peça colocando-me diante de tamanho conhecimento e onde os meus estudos não podiam explicar fenômenos, fatos e verdades que estavam nítidas como conhecimento. Vasculhei na minha cabeça varias leituras e tentei firmar nas leituras que tinha feito, ela não poderia me enfrentar, pois estava certo que tudo aquilo seria depois explicado diante das leituras e tudo que poderia concluir era que a minhas aulas eram divertidas e cheias de conhecimento e ela sabia pouco diante de mim. – Você precisa cuidar de ser espírito?

Como pode me chamar para me explicar que o meu espírito esta longe do conhecimento dela, aquele foi um tiro em minha convicções, enquanto queria achar respostas para as dificuldades de Bárbara com sua aprendizagem ela me diz que o meu espírito estava precisando de ajuda. Era uma palavra difícil de entender, pois estava certo que quem precisava de ajuda era ela pois o conhecimento de que ela precisava ajudaria a compreender melhor tudo aquilo, ou não????



Fig. 4 Mãe Bárbara de Tempo Marvila





Confusão, confusão... aquilo era o que eu não poderia considerar verdadeiro, pois onde estão as provas que ela poderia me dar para que eu pudesse acreditar naquele conhecimento? Mariana educadamente me falou sobre minha saúde, sobre o uso de folhas com a propriedade de uma fito terapeuta e me aconselhou a cuidar do meus rins, conversou sobre a minha vida pessoal como uma propriedade que psicólogos se admirariam, era a ciência humana revelada a cada palavra e a beleza que só os Orixás trazem ao mundo. Que beleza de momento, um encontro de um conhecedor de livros com a conhecedora do mundo dos Orixás - o casamento perfeito entre ciência e conhecimento popular. O encontro da Odara[5] tanto almejado nas nossa práticas e na busca de respostas o porquê a criança , o adulto e os freqüentadores de casa de santo devem sentir-se aceitos como pessoas que almejam um pratica pedagógica diferente e sejam atendidos e respeitados na sua busca pelo conhecimento não desprezando sua prática e conhecimento que tanto nos enriquecem como pessoas e seres humanos nas relações pessoais e por que não dizer espirituais.



[1] Cajaiba é distrito da Cidade de Valença – Ba



[2] Caxuté é uma forma popularizada de escrever, na grafia correta é CASSUTE (chefe, cabeça menor).



[3] Este orixá não tem qualidades, é conhecido na angola como Maianga ou Maiongá.



[4] Espírito de uma negra escrava que incorpora na médium. Um egum (espírito de morto)

[5] Categoria criada pela Drª Narcimária Luz que determina o conhecimento empírico e o cientifico.

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